O Resgate do Feminino nos Mitos enquanto Correspondências Evolutivas das Experiências Cognitivas Humanas!
A compreensão materialista que se encontra na nova modinha do entendimento existencial humano, destoa completamente das experiências subjetivas. Como se o imaginário humano e suas capacidades de criar ficções e outras narrativas, não fossem processos que surgem da natureza da matéria. Ora, símbolos por mais que não sejam representações de objetos reais, são realidades que compartilham informações da natureza do surgimento da consciência em animais humanos ou não humanos.
Como por exemplo os unicórnios, seres que nunca veremos fósseis, quando muito uma anomalia evolutiva que forma pequenas “deformações” ósseas em algum cavalo; mas que nunca chegará a se tornar grandes chifres. Ao menos não enquanto a humanidade existir. Mesmo assim, essa figura mítica arrebata crianças e jovens, quando surgem em alguma temática da cultura pop. E há pessoas idosas que relatam sonhos onde surgiram cavalos com chifres, na expressão inconsciente de alguma função psíquica.
Mas qual essa função? A que seria necessária a reaproximação humana aos símbolos ancestrais e mitológicos, quando vivemos numa crescente era “moderna”, caracterizada pela tecnologia e excesso de informações?
Bem, aqui nessas primeiras perguntas já encontramos a resposta; não? O excesso de informação e não direcionamento desses excessos, vem causando aquilo que jornalistas e outras pessoas chamam de “mal do século”: crises de desespero, ansiedades, medo involuntários e depressões. Mas se há um “mal do século”, haveria um “bem do século”?
Eu acredito que sim, pois se nos refreamos pelos excessos, neles podemos encontrar fontes dos tesouros das antiguidades, os quais podem nos dar chaves de compreensão a um retorno da natureza serena da mente. Se há tanta desinformação na atualidade, também nunca houve tanto acesso a textos antigos que apontam para uma busca das qualidades afetivas e virtuosas da natureza humana. Vejamos um exemplo nos mitos egípcios, com suas características de entendimento da mudança dos ciclos naturais:
“A Sacerdotisa Isis para seu filho” Hórus: “Ó meu filho, quando desejardes partir para combater o traiçoeiro tufão Seth, em defesa do reino, diga ao Pai Osíris que eu fui para Hermópolis e ali permanecerei por algum tempo.” – A cidade de Hermes, onde a técnica sagrada do Egito prosperava em suas descobertas científicas da época. Técnica sagrada aqui se refere à Alquimia egípcia. Mas nos atentemos aos símbolos deste conto:
“Depois da passagem e movimento necessário da esfera celeste, aconteceu que um dos anjos que habita no primeiro firmamento, me viu lá do alto e se acercou de mim, desejando se unir comigo sexualmente. O ser estava ansioso para que isso acontecesse, mas não me submeti. Resisti pois quereria perguntar-lhe sobre os segredos da preparação do ouro e da prata”. A tradução para mensageiros celestes (ou anjos), se dá posteriormente. A palavra antiga era “kye-roy”, algo como “Kairoi” na pronuncia. Tais seres eram representados constantemente em textos antigos de alquimia, onde os “Kairós” apresentam colorações diversificadas em cada processos, quando alinhados aos momentos astrologicamente correlacionados para extrair a essência da substância.
“Quando lancei minha pergunta ele não desejou responder, pois dizia ser um Grande Mistério. Mas retornaria no dia seguinte e traria com ele seu superior Aminael (ou Azazel), que poderia resolver meu problema. Disse que eu o reconheceria sobre seu sinal trazido por sobre sua cabeça. Então esse kairós pegou um vaso de cerâmica e me mostrou estar cheio de água clara. Ele queria me contar a verdade e mostrou o sinal de seu superior.” (Sinal do deus Knofis).
“No outro dia, qual o Sol estava em meio do seu curso, desceu o anjo que era maior, mas foi dominado pelo mesmo desejo de me possuir. No entanto eu queria fazer apenas a minha pergunta. Quando esteve comigo, eu não me entreguei. Resisti a sua ânsia até que seu desejo sucumbisse, mostrando o sinal de sua cabeça. Assim me deu a tradição de seus mistérios, sem esconder coisa alguma. Ele apontou para o sinal do vaso que carregava por sobre a cabeça e começou a descrever sobre a mensagem dos mistérios.”
“Eis que ele mencionou, pela primeira vez, o Grande Juramento e disse ‘Eu te conjuro em nome do Fogo, do Ar, da Água e da Terra’ 2 vezes. ‘Eu te conjuro em nome do Céu e das profundezas da Terra! Eu te conjuro em nome de Hermes e de Anubis, o uivador de Kerkorus e do Dragão Guardião! Eu te conjuro em nome da Barca e do seu barqueiro Karonte! Eu te conjuro em nome das Três Necessidades e dos Látegos da espada!’ Ao pronunciar esses juramentos, me fez prometer segredo absoluto sobre os mistérios que iria agora ouvir. Exceto para minha criança e ao meu amigo mais íntimo, de modo que tu és eu e eu sou tu.” Aqui se revela algo sobre o Casamento Sagrado, de modo que quando um segredo é compartilhado, os dois se tornam um só ser.
“’ Agora vá, observa e interroga ao Akaronte, o camponês. Vê e olha e fica sabendo dele, quem é o semeador e quem é ceifeiro. E aprende que aquele que semeia cevada, colherá cevada. E aquele que semeia trigo, também colherá trigo.’ – Agora, minha criança, ouviste isso como uma introdução e agora entende que isso é a criação inteira e o processo inteiro do nascimento. Sabe agora que um homem só é capaz de produzir um homem, um leão um leão e um cão, um cão. E se algo contraria essa natureza da Lei, é de fato um milagre e não poderá continuar a existir. Pois a natureza se compraz na Natureza e assim, essa mesma se supera.” Ora, o semelhante produz o semelhante.
“Tome-se uma porção de Mercúrio, fixando-o em torrões de terra pela magnésia, ou enxofre, e guarde-se. Tome-se uma parte de chumbo na preparação estabilizada pelo calor, e duas partes de pedra-branca. E da mesma pedra uma parte e uma parte de azougar amarelo (sulfeto de arsênico?) ... E uma parte de pedra verde (Esmeralda? Bronze enferrujado? Ou pedras verdes típicas de montanhas?) ... Mistura-se tudo com chumbo e quando estiver desintegrado, reduz-se três vezes a um líquido. Tome-se o Mercúrio que através do Cobre se tornou branco, tire-se dele mais uma parte. Bem como da magnésia dominante com uma parte de água. E do que resta do fundo do recipiente, tratado com suco de limão, usa-se uma parte. E do arsênico catalisado com urina de um rapaz não corrompido, toma-se uma parte. E depois de Academiai (silicato básico de sódio), uma parte. E depois de pirita, uma parte e uma parte de areia cozida com enxofre e monóxido de chumbo com amianto, duas partes. E das cinzas de cobatia (sulfeto de arsênico?), uma parte. Converta-se tudo em líquido com um ácido muito ativo e branco, e deixa-se secar. Assim se obtém a grande medicina.” Cobatia e magnésia não se referem aos elementos conhecidos atualmente, portanto não se pode ter certeza de que derivados químicos eram usados nessa composição, de forma literal.
Texto retirado da 2ª Palestra de Marie-Louise von Franz, encontrado na biblioteca Cultrix de Psicologia Junguiana, no livro “Alquimia – uma introdução ao simbolismo e seu significado na psicologia de Carl G. Jung”.
Percebe-se a relação de obter certos poderes mágicos pela capacidade de dissuadir de Isis, diferentemente do que se aplicam em rituais de baixa magia quando utilizam do sexo, muitas vezes de forma prostituída, para obter tal recurso dos planos do inconsciente. As derivações das escrituras que se destinam a Enoque, e ainda aparecem em fragmentos na bíblia vulgar, diz que tais mistérios foram compartilhados com a humanidade, a partir da lasciva sexual entre “gigantes” (anjos caídos) e as mulheres. Mas em uma visão profunda da psicologia dos complexos nos temas mitológicos aqui, apontam outra forma.
Isis, “a viúva” e Hórus, “o órfão”, são temas recorrentes em textos alquímicos sobre “a pedra da viúva” e “a pedra do órfão”. O tema do feminino que adquire os saberes de algo divino, recorre também para o tema do “Mal”, presente na bíblia vulgar que diz que Eva, tomando o conhecimento da Árvore Divina, trouxe o pecado e a morte para a humanidade. Deus haveria de guardar o conhecimento de Si Mesmo para tão somente si, colocando esse poder tão próximo da humanidade? Um ser tão poderoso precisaria testar sua própria criação, para fins de danação e castigo eterno? Me parece contraditório, mas sabe-se que pela Gnosis, não é bem isso a que o mito se refere...
No entanto, Isis ao receber os segredos é visto como um grande momento para aquisição de domínios mentais, nunca explorados antes. O elemento feminino adquire o conhecimento das camadas mais profundas e inacessíveis para quaisquer que fossem os aventureiros do Inconsciente Coletivo. E através de um mediador masculino, que ocorre a transmissão para a humanidade. Eva, a Deusa Isis, a Lua... São formas de conceber uma evasão do princípio psicológico da Anima. São portadoras dos Mistérios da Natureza, por assim dizer.
A profetiza Anima observa os acontecimentos futuros, os quais irão se concretizar de fato. Então ela busca formas e técnicas que possam auxiliar os demais imersos em seus instintos, a buscar elevar seus conceitos temporais para os atemporais. Atualmente a Anima surge nos sonhos como mulheres que causam impressões de forma importante, seja na submissão, na sexualidade, na alimentação, ou mesmo em fatores fenomenológicos da Natureza ou animais. A pessoa que não associa ao inconsciente um valor, irá dizer que isso é apenas material de memória fora de contexto. Mas todos nós nos impressionamos com sonhos exagerados.
Porém o Logos, a Luz Interior, ou Cristos, ou a Iluminação de Buda, não se dá ao corpo material sem o envolvimento de uma matriz feminina. Sem a mulher que se aventura e obtém da natureza o conhecimento necessário, não há salvação, ou seja, o surgimento da consciência. O conhecimento corrompe ou ajuda? Estar consciente é distanciar da natureza? Ou é isso que fortalece nossas capacidades de reorganizar e cooperar com a Natureza? O conhecimento ou é venenoso, ou é curativo, nas palavras de Marie-Louise.
Ocorre a “barganha”, de modo tipicamente feminino, onde Isis desacelera o impulso sexual do Inconsciente Coletivo representado pelo anjo. Levando-o a expressar seu conhecimento, para depois obter seu desejo. Isis tinha em mente o que ela queria, diante da precipitação do que o outro deseja. O conhecimento alquímico se deu pela resistência feminina, o não ceder. E ignoramos o que houve no final dessa troca, pois é tratado de forma discreta onde nem mesmo o redentor Hórus ficará sabendo. A forma instintiva que dá vasão ao amplo conhecimento caótico, não é do fenômeno do Animus, mas sim do Inconsciente Coletivo, que sempre irá exigir algo antes mesmo de ser conhecido o que quer que esteja a representar sua vasão.
O retardamento do impulso sexual tem sido uma conduta que leva ao conhecimento e à sabedoria, ao longo dos milênios. Claro que isso levado ao extremo, projeta as sombras das quais vemos constantemente em grupos de monges, ou padres. Esses numa busca por refrear todos os impulsos, causam mais sofrimento pessoal ou em uma sociedade, quando decretam suas ordens ou buscam de forma escusa, molestar e abusar de pessoas vulneráveis. Não é isso a que o mito de Isis se refere, pois ela não nega o ato sexual, apenas o retarda, obtendo enfim, da fonte da sabedoria capaz de elucidar toda uma futura geração.
Algo está fazendo pressão para surgir na consciência, mas é tão distante que só percebemos em nossa visão materialista, como se fosse apenas um impulso físico e biológico. Naturalmente, instinto e arquétipo estão interligados, nas ideias, emoções, concepções da fantasia, alucinações, sonhos e outros fenômenos psíquicos. Há um progresso na consciência quando mudamos o fator instintivo do impulso físico, para algo subliminar. Embora esse termo Freud o concebeu observando apenas um dos milhares de fenômenos arquetípicos que a humanidade percorre.
Outro fator concebido para a Anima apresentada por Isis, está no desenvolvimento posterior que se deu da sociedade antiga. Para a aquisição de conhecimento, Isis formulou uma armadilha contra Rá, o Deus Sol. Para que o velho Sol pudesse se curar da enfermidade que somente Isis conhecia, ele deveria contar seu nome verdadeiro, o nome que possui todos os segredos do mundo dos deuses, ou seja, do mais profundo inconsciente.
O Deus Sol havia ficado senil, incapaz de exercer suas funções masculinas de expansão e proteção, inferidos em seu simbolismo arquetípico. O nome secreto que contém o poder absoluto de uma divindade representa a Alma deste ser, o “mana”, ou poder vital. Isis barganha com seu Pai, oferecendo a cura se ele revelar seu nome secreto. Rá cede a chantagem, passando o poder Solar para a divindade feminina. Historicamente sabe-se que Isis passou a ser mais cultuada no Egito, até o final da grande dinastia; após longo período onde as divindades solares eram representadas por figuras masculinas, tais como Rá.
A estrutura social e política ordenada antes dos cultos à Isis, demonstraram que ao longo de milênios a sociedade estava passiva ao que lhes era ordenado por aqueles que seriam os herdeiros diretos do Grande Sol. Ou seja, uma sociedade pouco consciente, menos consciente do que a que vivemos atualmente, embora pareça relativamente semelhante nos tempos modernos do patriarcado político. Por volta de 3 mil anos antes do Ano 1 da Era Comum, os cultos lunares começaram a movimentar mais pessoas ao redor do Egito.
Quando o culto a Isis começa a ter mais valor do que ao de Rá e seu filho solar, também houveram grande desenvolvimento nos campos da geometria, das construções, da medicina e na organização racional das civilizações. As quais passaram aos movimentos de aprendizado escrito e também no entendimento das leis éticas anunciadas para as civilizações. Isso demonstra o balanço correspondente que há na compensação e equilíbrio psíquico. Ora, é dito que o lado feminino é passivo, receptivo, intuitivo e por vezes, inconsciente. Mas na prática e na história, quando uma sociedade se volta ao instinto feminino, se torna mais intelectual e direcionado ao progresso tecnológico.
A esse fenômeno se dá a nomenclatura psicológica de Enantiodromia. Ao mesmo tempo, esse fenômeno que dá seu contraponto do desenvolvimento racional aos aspectos naturais e femininos, força nossa psique a buscar algo mais equilibrado e cooperativo. Rituais, religiosidade, intuição e enfrentamento das situações desoladoras para a sobrevivência, formam os laços de adaptação coletivas e individuais nessa fase. O deus solar masculino transmite seu poder para a deusa lunar feminina. A sociedade se cansa da extrema racionalidade, entendendo que isso não irá solucionar os problemas humanos.
E dessa Enantiodromia é que surge a percepção do Novo Tarot de Urano, a mudança pendular das posições de algumas cartas, pois o Mago não se torna um grande praticante apenas por si mesmo e sua tal “verdadeira vontade”. O Mago precisa aprender com a Natureza, com o Inconsciente, com a força feminina da Alma do Mundo. Assim a Magia é o fenômeno da existência, da Natureza e o Mago, aquele que aprende e canaliza seu conhecimento da Anima para a realidade concreta. O anjo do Inconsciente Coletivo nada perde ao doar seu conhecimento para Anima, não é verdade? Ele ainda possui o conhecimento só que agora, esse conhecimento beneficiará aqueles que precisam e não ficará perdido nas camadas do instinto da Natureza Divina. Isis fez algo a respeito do conhecimento, enquanto o inconsciente o deixava intocável em si mesmo...
Você poderá encontrar mais desse fenômeno de transformação e retorno à consciência, a partir dos aspectos inconscientes, clicando aqui nesse vídeo, sobre a animação da obra Vinland Saga! E que a Natureza Feminina salve esse mundo absolutista patriarcal!
Michel L. C. Araújo - 26/12/2024.
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