Livro de Marie-Louise von Franz e James Hillman (2ª ed. 2016)
Von Franz aponta que a melhor pergunta para se fazer quando quer descobrir
seu próprio tipo psíquico é “o que eu mais costumo fazer?”. Pois mesmo um tipo
extrovertido acredita ser introvertido e preocupado com sua mente, ou sonhos.
Por mais que este tipo se interiorize um minuto ao dia, aquele mísero minuto é o
que importa, pois se sente mais perto de si mesmo. Talvez deveríamos
perguntar: qual sua maior aflição? Onde está seu maior sofrimento? Onde se
sente diante do maior obstáculo de sua vida?
Essas perguntas apontarão para a função inferior que retornarei posteriormente
neste resumo. Sabendo do tipo inferior, será mais fácil analisar quais tipos
superiores foram desenvolvidos. A pesar de que von Franz também aponte que
duas funções superiores podem ser desenvolvidas tão bem quanto é difícil dizer
se um tipo é pensativo intuitivo ou um tipo intuitivo com pensamento bem
desenvolvido, por ambos se equipararem. Daí que ela sugere a questão: a
pessoa sofre mais com obstáculos advindos dos fatos da percepção ou dos
problemas sentimentais? Assim podemos direcionar qual a primeira e qual a
segunda função bem desenvolvida, ou superior.
E é claro que isso não funciona como um joguinho onde poderemos
compreender de forma espontânea nossos tipos. Requer análise pessoal ou
psicológica para revelar essa investigação. Porém saber os tipos e funções nos
ajudam a direcionar melhor nossos conflitos para resoluções interpessoais, ou
seja, nas relações do dia a dia, na compreensão de si e dos outros.
Von Franz então dá suas considerações gerais do problema de assimilação da
função inferior, onde parte da formação da consciência na primeira infância a
partir do inconsciente. O inconsciente é um fato primário e a consciência é
secundária, ou seja, a totalidade do inconsciente e a estrutura da personalidade
precedem a personalidade que denominamos o nosso eu, ou o ego.
Um erro que cometemos é de acreditar que podemos elevar a função inferior
como se pescássemos um peixe de um rio turbulento. E assim poderíamos
educa-la para adquirirmos um poder do inconsciente ou dos arquétipos
anteriores a nós. A função inferior é quase integralmente ligada ao mais profundo
inconsciente e o que podemos tomar de empréstimo de sua força surgem nos
sonhos ou quando conseguimos assimilar algum aspecto sombrio ou sentir seus
efeitos nas irracionalidades do dia a dia. Mas apenas até aí que conseguimos
observá-la passar em nossas vidas e perturbar nosso comportamento. Nunca
iremos doma-la como se fosse um animal próprio para a domesticação.
Há também um aspecto muito positivo no campo da função inferior: uma grande
concentração vital! Quando esgotamos a função superior ou esta estagna, a
função inferior é capaz de repor essas energias através de novos potenciais de
vida, estimulantes, como se renascesse e desejasse ser uma nova pessoa!
Ela também tem um aspecto de inadaptação, como pessoas idosas
acostumadas sempre a exercer um certo tipo de trabalho, ao se aposentar elas
se sentem muita das vezes desamparadas, tendendo à depressão por não
reencontrar novas potências de ser que renasçam de seu inconsciente. Assim
acabam adquirindo um habito de ocultar sua personalidade inferior com uma
pseudorreação substituta. Por exemplo, um tipo pensativo muitas vezes não
expressa normalmente seus sentimentos (o extrovertido), ou não compreende
os sentimentos das pessoas com quem convive (o introvertido). Quem o observa
por fora o considera uma pessoa fria e insensível. Quando a verdade é que não
conseguem expressar os sentimentos ou expressam em momentos que
esgotam essa energia antes de poderem se amostrar para os próximos.
O mesmo erro é acreditar que o tipo sentimento não pensa, quando este tipo tem
constantemente pensamentos profundos e genuínos. Mas estes pensamentos
não se modulam de uma forma que o tipo sentimento consiga expressar de sua
maneira quando fala ou escreve. Durante um exame o pensamento foge, mas
quando chega em casa o pensamento desobediente reaparece em ideias.
A vida moderna não tem misericórdia com estas funções inferiores e isso nos
leva a dissimular reações não-genuínas. Tomam as reações do coletivo,
banalizando quando são interpostos para apresentar um pensamento ou um
sentimento nos momentos de pressão. Fazem uma mescla de frases-já-ditas ou
expressões comuns apreendidas ao longo da vida para facilitar quando
defrontados a mostrar algo que não é típico de suas funções superiores. E o
mesmo se aplica aos intuitivos, cuja função inferior seria a sensação, onde
apenas seguem os modos convencionais de lidar com a sociedade.
Em alguma situação o intuitivo precise usar sua função inferior da percepção:
sente-se atraído pela ideia de esculpir, modelar, trabalhar com as mãos em
alguma arte, exteriorizando seu propósito intuitivo com algum material concreto.
Ao realizar sua arte ainda de forma infantil, talvez, sentem que algo cresceu em
seu interior, mas de súbito a intuição afirma: “isto deveria ser ensinado à todas
as pessoas, em todas as escolas!” Então se voltam para a intuição e pensam em
todas as possibilidades de estudos da arte que a humanidade desenvolveu, de
sua composição, acreditando até mesmo que isso seria a chave do
conhecimento da divindade que salvará a todos. O intuitivo introduz um mundo
inteiro, deixando de considerar apenas o prático que era produzir sua arte. A
função principal delira, saindo do seu contato com a terra e novamente voltando
para o abstrato ar das ideias futuristas...
Von Franz também aponta para o inverso, quando a função inferior invade a
superior e a falsifica de algum modo. Um exemplo apresentado é no tipo
perceptivo (ou sensorial). Este tipo costuma ser excelente em sua relação com
o movimento material, tais como dinheiro e trabalho. Contudo há o exagero
inevitável em alguns momentos da vida: imaginam possibilidades sombrias onde
poderia sofrer um acidente, ou despertar sua alma utilizando de métodos
obscuros que chegou para si em algum anuncio.
Assim ou tem medo de ser incapacitado do trabalho e passa a empilhar dinheiro
e objetos sem uso como um acumulador, ou gastam fortunas em
pseudossoluções fajutas que nunca dão um descanso para esta pessoa,
entrando no prejuízo financeiro e muitas das vezes falindo. A intuição inferior
negativa está para as possibilidades ruins. Neste mixtum compositum
neurótico de tipos que não conseguem mais exercer sua função superior, há um
estágio de transição onde conhecer bem o próprio tipo psíquico poderá evitar
estes fenômenos desgastantes e trabalhar bem sua própria vontade.
Von Franz também aponta para o desenvolvimento da percepção que dá certo
sentido da realidade e a intuição como capacidade de antecipar um problema
para não agir tão desavisadamente. Não há campos intermediários de apoio,
mas se a análise psicológica puder levar ao desenvolvimento de suas funções
de apoio, poderá vencer a dificuldade com as funções intermediárias. A mestra
refere é bom ter em mente de que jamais deverá passar diretamente para a
função inferior, pois a vida fará isso normalmente, pois os aspectos biológicos
da mente são indiferentes às nossas capacidades cognitivas.
Em suas respostas para uma entrevista, Von Franz diz também sobre a fuga da
análise, onde frequentemente artistas pensam que se analisados irão educar sua
função inferior e perderão assim, sua criatividade. Isso é impossível, pois mesmo
que o analista seja estúpido o bastante para tentar fazer isso, não conseguirá. A
função inferior é como um cavalo indomável. Pode ser subjugado tanto quanto
não fazemos coisas estúpidas o tempo todo, como dizer à fera: “eu não fustigo
você se você não me derrubar”. Isso é o máximo que se pode conseguir com a
função inferior, nunca a governar ou educa-la, mas com inteligência de ceder,
poderá organizá-la de forma que esta não lhe derrube em momentos ruins.
Aquilo que é inconsciente para ambos os aspectos extrovertidos/introvertidos
não aparece em projeções externas. Aos extrovertidos poderá o inconsciente se
manifestar como uma visão ou fantasia, de forma ingênua, porém genuína,
levando a sério essa contemplação do mundo interno. Porém quando o
extrovertido extroverte sua intuição como um prêmio, arruínam tudo, mas se não
estragarem a introversão com a vaidade, pode-se observar uma conduta mais
real do que com introvertidos diante seu inconsciente.
Ao introvertido que se acorda para sua extroversão inferior, poderá espalhar o
calor da vida em um verdadeiro festival simbólico melhor do que qualquer
extrovertido. Dando vida profunda em significados e sentimento vital, semelhante
a magia. Se um introvertido consegue pôr para fora sua extroversão inconsciente
de maneira adequada, poderá criar uma atmosfera simbólica como uma
comunhão ou um rito consagrado. Entretanto vale lembrar que a maioria das
pessoas escondem seu lado inferior com pseudoadaptações, pois temem serem
julgados pela sociedade e por si mesmas naquilo que se denomina falsas
crenças, ou o Eu inferior e infantil que está no domínio dos medos da vida adulta.
Resumo por Michel L. C. Araújo – Abril de 2024.
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